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Mensagens

Poetas desmancha-prazeres

Morreu um poeta. Durante todo o dia, os noticiários da Antena 1 lembraram o triste acontecimento. A certa altura, um jornalista mais sensível lamentou que o autor tivesse desaparecido pouco antes de se assinalar o Dia Mundial da Poesia. Mais um esforço para se manter vivo e teria morrido, em suprema glória, quatro dias depois. Teria sido muito mais bonito, mais «poético». Ah, o efeito que não daria!

Luta de classes

Nas ruas, os remediados arrancam os olhos aos pobres. Os pobres quebram as pernas aos miseráveis. Os miseráveis atiram pedras aos moribundos. Nos estúdios de televisão, os comentadores comentam. Nos camarotes, os ricos assistem a tudo, em roupa de gala, e batem palmas. Palminhas elegantes e discretas. Um tilintar simpático de pedras preciosas.

Tradutores à revelia

Ontem, na Térmita, o Rui confessou que traduziu autores de língua espanhola (pelo menos Oliverio Girondo, Roberto Arlt, Rúben Darío e Virgilio Piñera) sem saber falar espanhol. Eu traduzo do francês sem as devidas credenciais académicas. Acho que devíamos fundar uma associação não profissional de tradutores à revelia.

Palavras à-toa

Michelle Porte:  Não tínhamos nenhuma confiança no espectador?  Marguerite Duras:  Não. Tomamos o espectador por uma criança. O espectáculo cinematográfico é um espectáculo infantil... Quando vemos filmes antigos na televisão, por exemplo, o espectador é tratado como uma criança atrasada, como se fosse tonto, como se tivéssemos de lhe fazer a papinha toda.  Tudo isso vai de encontro a esta suspeita, definidora, que escondi bem dentro de mim — quando filmo, ela está em todos os planos — que o cinema não existe como função fundamental. Que é uma miscelânea de aspirações derivadas, falhadas, de múltiplas amarguras. E ao mesmo tempo que é assim, e isso agrada-me, tenho de desconfiar dos polícias do cinema, desses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa — mas as palavras à-toa são palavras lassas, livres. São magníficas, as palavras à-toa. Para cada um dos meus filmes vejo esta imagem: um supermercado que arruina tudo à sua volta, e que dita palavras de ordem: ou p

Oh Lord, won't you buy me a Mercedes-Benz?

A compra do Mercedes-AMG One ( autêntico Fórmula 1 de estrada ) por mais de 3 milhões está em diversos jornais e televisões. As notícias  — uma mistura de informações técnicas e secretismo de pacotilha — foram redigidas pelo concessionário que mediou a aquisição e enviadas para as redações para fins publicitários dissimulados. O empresário do Norte que comprou o hiperdesportivo pediu anonimato.  Era interessante saber quais as empresas que lhe permitiram ganhos tão avultados e também que ordenados pagam aos trabalhadores. Esse é que é o território do jornalismo, desse jornalismo que está a ser morto e substituído por agências de comunicação liberais que acham que a riqueza dos empresários deve-se ao seu carácter empreendedor quando, na verdade, a maior parte das vezes deve-se a um subpagamento aos trabalhadores, logo a um roubo.

O medo devora tudo

Fomos rever O Medo Come a Alma , de Fassbinder. Não é uma obra de ficção criada em 1973, mas um comentário sobre Portugal e a Europa, em Março de 2024. Numa entrevista a Hans Günther Pflaum (Fevereiro de 1974), e a propósito deste filme, Fassbinder diz: «Mais cedo ou mais tarde, os filmes devem deixar de ser filmes, deixar de ser histórias, para se tornarem reais.»

Urna eleitoral

(...) No Distrito de Santarém, moro numa pequena aldeia onde há pessoas que vivem do Rendimento Social de Inserção, um subsídio que o Chega já disse várias vezes querer diminuir drasticamente e, talvez mesmo, acabar com ele. Pois há pessoas nessas condições que declararam ir votar no Chega, num aparente suicídio financeiro através da urna eleitoral. (...) Crónica de Pedro Tadeu no DN.

«Tu fazes como os outros, fazes o que tens a fazer.»

«sentada numa paragem de autocarro em Oeiras, disse ao microfone da SIC-N que tinha votado no partido de extrema-direita porque quer para as filhas, netos e bisnetas o que havia antigamente, antes do 25 de Abril. Perguntada pela jornalista sobre se nesse caso achava que o seu voto vai melhorar a vida democrática do país, a entrevistada diz que sim e que espera melhoras na habitação e saúde.» Também vi esta peça que a Fernanda Câncio refere no seu texto. A mulher estava contente porque tinha votado em quem ganhou (na verdade, em quem ficou em terceiro lugar).  Nota: é o segundo link para o DN, no dia em que a Global Media avança com um despedimento colectivo.

Para armar sarrabulho lá no Parlamento

Não encontrámos jovens que assumissem ter votado Chega. Já mais velhos, bastantes. Paulo Guerreiro, 65 anos e Francisco Palma, 62, assumem-no. “Já votei PS e CDU, mas desta vez foi Chega. Ele (André Ventura) é frontal, diz as verdades”, diz Guerreiro, enquanto empilha as caixas dos sapatos que não vendeu na feira.  Por seu lado, Palma reconhece que “se soubesse que ia ter tantos votos, não tinha votado Chega”. “Não quero que ganhe, é só para armar sarrabulho lá no Parlamento. Estamos saturados de serem sempre os mesmos e não resolverem os nossos problemas. É preciso alguém para agitar”, frisa, segurando numa caixa com pés de agrião para plantar. Sugere mesmo que o PSD “dê uma oportunidade ao Chega no Governo, para ver o que fazem”.  Da reportagem de Valentina Marcelino no DN.

Não se pode dizer assim muito claramente

Num café em Beja, uma jornalista pergunta a duas mulheres se não estão admiradas com a votação do distrito . Dizem que não, que toda a gente estava à espera.  A jornalista pergunta porque é que isto aconteceu. Uma refere a insegurança por causa da imigração. A outra diz: — Por muitos motivos, alguns não se pode dizer assim muito claramente.

Eleições legislativas

Os jornalistas teimam em alterar o sentido destas eleições, referem-se sempre à escolha do primeiro-ministro e do governo, mas eu nunca voto no primeiro-ministro nem no governo, voto para eleger quem me represente na Assembleia da República. E só lamento que tanta gente que precisa de quem lute pelos seus direitos encolha os ombros e diga que não liga à política. — Não é a política a forma de lidarmos uns com os outros?  Outra coisa que me chateia é a pergunta que se tornou lugar comum: a quem é que comprávamos um carro em segunda mão? Nem quero saber do carro, nem tudo se resume a uma relação de compra e venda. Sei bem é com quem partilhava a mesa e com quem nem um café tomava.
Eleições de 1975. Arquivo Diário de Notícias.

O romance da poltrona de orelhas

Talvez a característica mais notável da escrita de Thomas Bernhard seja o ritmo musical, a forma como as palavras correm, balançam, volteiam. Esse movimento desenfreado tem um objectivo muito preciso: deitar abaixo de modo implacável todas as falsidade dos seus conterrâneos, expôr todas as hipocrisias dos seres humanos, derrubar-se a si mesmo, não deixar nada de pé. Mas Thomas Bernhard utiliza outras estratégias estilísticas igualmente potentes. Por exemplo, os objectos que surgem vezes sem conta ao longo dos seus monólogos, para além de conferirem materialidade ao discurso, acabam por ficar gravados na nossa memória, de tal forma que quase podemos jurar que chegámos a ver um ou outro. A poltrona de orelhas onde o narrador de Derrubar árvores — uma irritação se senta logo no início é o objecto principal do romance. É nesta poltrona que está na penumbra, atrás da porta por onde entram os convidados do jantar artístico , todos esses escritores e músicos e actores que ele conheceu

Sair da vila

Entre os operários da rua Wilmott, homens e mulheres que o fabricante de móveis trouxera para a vila, havia muitos que falavam línguas desconhecidas. Mary caminhava por entre eles e gostava de ouvir aqueles idiomas estranhos. Estar naquela rua fazia-a sentir que saíra da vila e se encontrava de viagem por uma terra estranha. Sherwood Anderson, O Triunfo do Ovo e Outras Histórias . Tradução de José Miguel Silva. 

Nestbeschmutzer

Sempre pensei que nenhum escritor pudesse usar o método (exuberante? exagerado?) de Thomas Bernhard. O que ele faz com as palavras é tão difícil e extraordinário que sempre pensei que ninguém se atreveria e seguir esse caminho tortuoso. Além disso, a torrente musical do seu discurso ininterrupto não é bem da escrita que emerge e só um escritor que não seja escritor, ou melhor, só um escritor que lute contra a escrita e contra tudo, só um verdadeiro Nestbeschmutzer (não devia ser Nestzerstörer ?) consegue lá chegar. Foi por isso com muita estranheza que encontrei vestígios do tom bernhardiano em «Pudor e Dignidade». Dag Solstad até consegue estabelecer uma relação interessante com O Pato Selvagem de Ibsen. Quando, a meio de uma vulgar aula de literatura a uma turma do secundário, Elias Rukla descobre a importância e o verdadeiro papel do médico Relling, está longe de se aperceber que ele próprio é uma personagem secundária e está no centro de um livro sobre uma personagem secundária.

Simples

Faltam cinco dias para as eleições. O curandeiro continua empenhado em limpar tudo. Cidades, aldeias, bairros, ruas. O país inteiro. O curandeiro quer limpar as doenças da sociedade e as maleitas das pessoas. Varrer constipações, gripes, obstipações, unhas encravadas, impotência, queda de cabelo e dentes cariados. Arrancar braços e pernas inúteis. A fruta podre e as ervas daninhas. Não vale a pena fazer perguntas. O curandeiro só tem respostas. É simples.

Na poltrona de orelhas

Nós julgamos que temos vinte anos e agimos de acordo com isso e temos na realidade mais de cinquenta e ficamos totalmente exaustos, pensei eu, procedemos connosco como com vinte anos e arruinamo-nos e procedemos também assim com todos os outros, como se tivéssemos vinte e temos cinquenta e na realidade já não aguentamos absolutamente nada, esquecemo-nos também de que temos uma doença, várias, muitas doenças juntas, as chamadas doenças mortais , com as quais temos de viver a maior parte do tempo, o que nós, porém, ignoramos, julgando a maior parte do tempo que não é verdade, quando afinal elas aí estão sempre, permanentemente, toda a vida e um dia nos matam, procedemos connosco como se ainda tivéssemos as mesmas forças que tínhamos há trinta anos, quando nem sequer já temos uma fracção dessas forças de há trinta anos, nada dessas forças já nos resta, pensei eu na poltrona de orelhas. Derrubar árvores — uma irritação , de Thomas Bernhard. (Maravilhosa) tradução de José A. Palma Caetano.

Nomes de pássaros num folheto turístico da Serra do Alvão

Maçarico-das-rochas, bútio-vespeiro, tartaranhão-caçador, tartaranhão-azulado, gavião, águia-cobreira, águia-calçada, bútio-comum, peneireiro-vulgar, ógea, falcão-peregrino, andorinhão-preto, andorinhão-pálido, poupa, pica-pau-malhado, laverca, petinha-das-árvores, petinha-dos-campos, alvéola-amarela, alvéola-cinzenta, alvéola-branca, melro-d’água, carriça, ferreirinha-comum, pisco-de-peito-ruivo, rabirruivo-preto, cartaxo-comum, chasco-cinzento, melro-das-rochas, tordoveia, toutinegra-de-bigodes, papa-amoras, toutinegra-do-mato, felosa-de-bonelli, felosa-ibérica, chapim-de-poupa, chapim-carvoeiro, trepadeira-azul, trepadeira-comum, pega-rabuda, gaio, gralha-de-bico-vermelho, corvo, gralha-preta, estorninho-preto, pardal-montês, pintarroxo, dom-fafe, cruza-bico, escrevedeira-de-garganta-preta, cia e sombria.

Andar para a frente e para trás

Quando comecei a ler «Pudor e dignidade», de Dag Solstad, não sabia que isso me iria obrigar a ler «O pato selvagem», de Ibsen (porque é que nunca tinha lido esta peça antes?) e reler «Derrubar árvores — uma irritação», de Thomas Bernhard.  Calhou bem, Bernhard é extremamente apropriado para opor ao cheiro a podre que emana da campanha eleitoral.

O lado luxuriante

O Camião é um livro compósito. Abre com uma épigrafe de Maurice Grevisse sobre o carácter temporal do condicional. Depois vem a conversa entre Marguerite Duras e Gérard Depardieu sobre aquela mulher que pede boleia na estrada e conta a sua vida, mais as descrições da paisagem por onde o camião avança, e algumas didascálias. Seguem-se os textos de apresentação: quatro projectos onde Duras fala das suas intenções e do estado do cinema. Por fim, a entrevista de Michelle Porte. E a entrevista acaba com uma pergunta de Marguerite Duras.  M. P .: Acho que do que mais gosto n’  O Camião é que o filme fala de tudo ao mesmo tempo.  M. D .: O lado luxuriante?

Se eu o conseguisse compreender, compreenderia tudo

Faltam-me palavras para contar o que aconteceu na minha história. Não a posso contar. Talvez o homem branco e calado fosse a Morte. Talvez a mulher que esperava, ansiosa, fosse a Vida. Mas o velho de barbas grisalhas e o dos olhos malévolos intrigam-me. Por muito que pense, não os consigo compreender. A maior parte do tempo, porém, não é neles que penso, mas no janota que passou toda a minha história a rir-se. Se eu o conseguisse compreender, compreenderia tudo. Sherwood Anderson, O Triunfo do Ovo e Outras Histórias . Tradução de José Miguel Silva.
É nos anos oitenta que começa o Godard de que mais gosto (tem a ver com Anne-Marie Miéville). Prénom: Carmen , de 1983, é já uma espécie de música, uma música do pensamento? Compreende-se com o corpo. — Oui, monsieur Jeannot, il faut fermer les yeux au lieu de les ouvrir

La puissance de Godard

Na véspera do arranque da campanha eleitoral, fui rever Prénom: Carmen . — Comment ça s’appelle, quand tout le monde a tout gâché et que tout est perdu, mais que le jour se lève et que l’air quand même se respire ? — Cela s’appelle L’Aurore, mademoiselle.