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Um Fausto

Dois homens, pai e filho, ambos velhos. Outrora, grandes glórias da ciência e da academia. O pai, de noventa anos, praticamente esquecido pela sociedade, o filho, de setenta, a caminho disso. O pai lamenta-se de não ter morrido antes de cair na implacável espiral de decadência provocada pela velhice. O filho ainda acredita que é capaz de lutar contra ela. O pai aconselha o filho a matar-se enquanto há tempo, enquanto se não transforma num “semimorto” e não começa dentro dele o processo de nascimento do “monstrozinho”. O filho ainda pode aspirar à imortalidade, diz o pai: só alguém que morre no momento certo, no auge da glória pública, pode viver para sempre. “Mata-te”, repete ele ao filho, apontando-lhe a bengala (mais simbólica do que concreta). O filho, por sua vez, diz sentir-se bem, “completamente vivo”, com ânimo para aproveitar a vida e a fama, e afastar o terror da decrepitude e decadência. O pai insiste para que o filho se suicide com uma ampola de cianeto. O filho, calma e pacientemente, recusa. Incapaz de o convencer com palavras, o pai pede-lhe para que o ajude a arranjar os cortinados do escritório. O filho, obediente, sobe a uma cadeira e o pai empurra-o com a bengala. O filho cai pela janela e morre.

Os Imortais, a primeira peça de Prista Monteiro, publicada em 1959, é uma espécie de releitura oblíqua da tragédia de Fausto. Manoel de Oliveira incluiu esta história em Inquietude, o filme que realizou quando tinha justamente 90 anos, a mesma idade do pai da história. Também não por acaso, é das sequências mais divertidas do seu cinema. A sublime ironia de Oliveira é impossível de descrever. A tragédia confunde-se com a comédia, o terror com o riso.

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