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O Lado B de Húmus

Pergunto-me se Húmus pode ser lido como uma espécie de Lado A de Pedro Páramo . E Pedro Páramo o Lado B de Húmus . Onde há humidade no primeiro, há extrema secura no segundo. Onde há frio em Húmus , há calor tórrido em Pedro Páramo . Onde há negrume em Brandão, há uma luz torturante em Rulfo. De resto, a angústia é a mesma. Os fantasmas são os mesmos. O sentimento de perda é semelhante. Tudo está morto, incluindo tudo o que está vivo. (Fotografia de Juan Rulfo) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Na Suécia medieval, não se jogava a bisca

Para enganar a morte e o tempo, as personagens de Húmus (ou será melhor chamar-lhes espectros, sombras?) jogam um eterno jogo de cartas: “Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três - e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca - o jogo é o da morte...” A diferença entre Brandão e Bergman é o tipo de jogo. No Sétimo Selo , o cavaleiro e a morte jogam xadrez. O resultado, no entanto, é o mesmo: ganha a morte. No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Se eu gritar

No capítulo “Deus” de Húmus , lê-se: “Preciso de um Deus que me atenda, que me escute, que saiba que sofro e que me veja sofrer. (…) Debaldo grito – não há quem me ouça. (…) Deus, tu és monstruoso!” Em 1923, Rainer Maria Rilke publica as Elegias de Duíno . Eis os primeiros versos da primeira elegia: Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua natureza mais potente. Pois o belo apenas é o começo do terrível, que só a custo podemos suportar, e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha destruir-nos. Todo o Anjo é terrível. (Tradução de Maria Teresa Dias Furtado.) No domingo, 12 de Março, ªSede assinala os 150 anos do nascimento de Raul Brandão.

Tempo e granito

A “vila” que serve de cenário a Húmus , de Raul Brandão, pode ser qualquer vila ou cidade. É uma pura abstracção: “A vila é um simulacro. Melhor: a vida é um simulacro”. Mas desde a primeira linha que não consigo deixar de pensar no Porto, cidade onde o escritor nasceu e que ele conhecia bem. (Esta mania de os leitores precisarem de pontos de referência para não perderem o pé. Um leitor de Guimarães dirá que se trata de Guimarães e ninguém poderá negá-lo.) A vila de Húmus é feita de granito, um “granito salitroso”, erguendo-se sobranceira ao mar (o mar é uma ficção minha). Granito que impõe ao texto um tom duro, cinzento e escuro. “Estátuas de granito a que o tempo corroera as feições.” A pedra do Porto que é feita de quartzo, feldspato, mica e tempo. Camadas de tempo que se acumulam umas sobre as outras, num longo e lento trabalho que se repete infindavelmente: “Passou um minuto ou um século?” E a humidade que se apodera de todas as coisas, vivas e mortas: “A humidade entranhou-se n

Raul Brandão, 150 anos

Para ti, nada é sagrado

LÉON - Ó Mamã, evitemos os dramas à Ibsen, com toda aquela tragédia tramada acerca das profissões das personagens e das deficiências de cada uma. Prefiro as tragédias de sopa fria à Strindberg. A MÃE - Para ti, nada é sagrado. Tratas o Ibsen e o Strindberg tão mal como me tratas a mim. Stanislas Witkiewicz, A Mãe . Tradução de Luiz Francisco Rebello.

Da garrafa saem vapores espirituosos

São trinta páginas. Facilmente poderíamos dizer que "Três horas esquerdas" de Daniil Kharms é um livro pequeno, ou até um livrinho. Desenganem-se, o tamanho é um embuste (de Daniil Kharms, sempre; da editora Flop só para começar), e diminutivos não servem à obra. Os textos de Kharms — é assim que o vou nomear por causa do "h" aspirado, dos tormentos, do charme e de Sherlock Holmes (ler explicação na valiosa apresentação feita pelo tradutor Júlio Henriques) — são densos, quimicamente densos, isto é: em cada um dos 14 textos que compõem o livro há muita matéria concentrada. Kharms é perigoso e escreve como quem lança bombas; desde a primeira palavra, tudo aponta para o desastre — um desastre formidável mas também bastante cómico. E desagradável; desagradável é uma propriedade que Kharms usa como se fosse uma écharpe esvoaçando enquanto ele conduz um descapotável vermelho em excesso de velocidade (é curioso como estas histórias nos deixam impressões visuais tão for