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Quatro breves notas sobre O Cavalo de Turim

Não havia horizonte, salvo não haver horizonte. F. Pessoa, A estrada do esquecimento. 1) Endgame Se Béla Tarr decidisse filmar Endgame , de Samuel Beckett, talvez o resultado não fosse muito diferente de O Cavalo de Turim . Uma casa isolada numa planície quase deserta. Dois personagens ali encerrados, um homem e uma mulher, pai e filha. Uma porta e uma janela. O que sabemos do exterior resume-se quase exclusivamente ao que é possível observar a partir dessa janela. Dias e noites sucedendo-se, aparentemente iguais entre si. HAMM (...) Como está tudo? CLOV Como está tudo? Numa palavra? É o que queres saber? Um segundo (aponta o óculo para fora [da janela], observa, baixa o óculo, volta-se para Hamm.) Mortibus. Samuel Beckett, Fim de partida . 2) Deus criou o mundo em seis dias, o mesmo tempo que demorou a destruí-lo A narrativa de O Cavalo de Turim decorre em seis dias, ao longo dos quais cada coisa se vai apagando, numa espécie de lento e inexplicável desmaio.

1971-1986

Sequência de abertura de Morte em Veneza , de Luchino Visconti, 1971. Em fundo, música de Mahler: Adagietto,  da Sinfonia n.º 5 . Sequência de abertura de À flor do mar, de João César Monteiro, 1986. Em fundo, música de Bach, Adagio ma non tanto,  da Sonata n.º 3 em mi menor, BWV 1016 .

Princípios essenciais de geografia

O livro começa com esta frase: Ao contrário do que acontece em certas obras de ficção, tudo o que aqui se diz é absolutamente verdade. Tudo o que aqui está, ou existe, ou existiu. Um pouco mais à frente, lê-se o seguinte: É por isso que não posso entreter-vos com uma história que seria, a um tempo, empolgante, obscura e dramática. Juntando as duas frases, obtemos o programa: Ao contrário do que acontece em certas obras de ficção, tudo o que aqui se diz é absolutamente verdade. Tudo o que aqui está, ou existe, ou existiu. É por isso que não posso entreter-vos com uma história que seria, a um tempo, empolgante, obscura e dramática. A antiga e sempiterna fronteira entre realidade e ficção. O que faz ela aqui, de novo, quando sabemos que essa linha, tão vaga como um castelo no ar, é um truque de ilusão? A resposta reside justamente no facto de ser o primeiro truque da literatura. O grande truque a partir do qual se geram todos os outros. Um bom autor coloca, desde logo, as cart

Debaixo da pele

O grande motor da tragédia é a morte. Ao contrário dos deuses, nós morremos e somos presa fácil de todos os seus caprichos. Mas se a morte é a nossa grande tragédia, é também o nosso ponto de fuga. O fim de tudo. O que acontece em Tatuagem , de Dea Loher, é que a morte ganha vida, reproduz-se e avança como um cancro. A tatuagem está inscrita pelo lado de dentro, no avesso da pele, não se pode arrancar senão arrancando o próprio coração. Não existe fim para a tragédia em Tatuagem . Primeiros indícios Uma família de quatro pessoas vive encerrada no interior de quatro paredes, um segredo quadrado, “a incurável doença da gaiola”. O pai Wolf, a mãe Juli, e as duas filhas adolescentes, Anita e Lulu. Os indícios começam aqui. O pai é o lobo (Wolf); a mãe é uma espécie de cão fiel do pai (Juli dos Cães), incapaz de ladrar e de mostrar os dentes; Anita é a filha mais velha, vítima silenciosa dos abusos sexuais do pai; e Lulu, a filha mais nova e rebelde . Segundos indícios Wolf é p

Leia Cícero!

Arnaud conhecia bem o fruto que se pode tirar da leitura atenta de um autor. Como lhe perguntassem o que era preciso fazer para se obter um bom estilo, respondeu: - Leia Cícero. - Mas - tornou a pessoa que o consultara -, eu queria aprender a escrever bem em francês. - Nesse caso - tornou Arnaud -, leia Cícero! Antoine Albalat, A formação do estilo pela assimilação dos autores . Tradução de Cândido de Figueiredo. "A formação do estilo pela assimilação dos autores." O título é todo um programa.

Kiarostami filma Dante

Fomos rever, após tantos anos, O Sabor da Cereja . Um aspecto que agora me parece estranhamente óbvio é a relação com A Divina Comédia , de Dante, e em particular com a primeira parte,  Inferno . É impossível não comparar a topografia de O Sabor da Cereja com os negros vórtices dos nove círculos infernais. Os longos planos de Badii percorrendo os estradões sinuosos, secos e empoeirados dos subúrbios miseráveis de Teerão, lembram a viagem de Dante pelo Inferno. Os mesmos personagens perdidos e condenados a uma vida de eterno martírio, as máquinas a revolverem constantemente a terra como demónios cegos e obstinados, os caminhos intermináveis abertos sobre abismos, exactamente como no cone invertido do inferno dantesco. O próprio projecto de suicídio de Badii, que inclui um buraco aberto junto à base de uma cerejeira e a ajuda de alguém que o cubra com “vinte pás de terra”, remete para Dante. No primeiro grande diálogo do filme, Badii tenta convencer um jovem recruta a ajudá-lo, dizendo-

Dez cavaleiros retorcendo os bigodes

"Ah, então reconheces que a gente se diverte bem na taberna de Havrda! Se conhecesses a Vlasta! Ela, antes de ser puta, era cabeleireira no teatro, e lá já era famosa, ocupava-se de perucas, uma vez, segundo me contou, esqueceram-se da caixa de maquilhagens e barbas durante uma tournée em que representavam uma comédia espanhola, chamada Cid ou Kid... e sabes como é que a Vlasta arranjou as barbas e bigodes?" O pai preferiu não responder (...). "Então a Vlasticka levantou as saias, depois pegou na tesoura e zic, zic, cortou os pelinhos, ficou toda rapada, e como ainda faltava para os bigodes, ainda cortou metade dos pêlos da ajudante de cabeleireira... colaram-nos sobre as faixas de esparadrapo, ou seja, emplastro, e dez cavaleiros andavam, pelo teatro, retorcendo os bigodes, a Vlasticka recebeu depois uma menção de felicitações do director...". Bohumil Hrabal, A terra onde o tempo parou. Tradução de Ludmila Dismánova e Mário Gomes.